Eduardo
Pereira Francisco
eduardo.p.francisco@gmail.com
BOURDIEU,
Pierre. Sobre a televisão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Sobre a
televisão
surge como uma das mais populares obras de Bourdieu sobre o campo da
comunicação, com ênfase no campo jornalístico e sua autonomia relativa aos
outros campos sociais e à maneira como eles interagem entre si. Em linhas
gerais, o autor defende, nesta obra, a ideia de que, nas últimas décadas, o
jornalismo (principalmente após a integração da TV no campo jornalístico) vem
contribuindo com o empobrecimento intelectual e cultural da população e, até
mesmo, de outros campos de produção cultural, como a arte e a ciência, assim
como a política e a democracia, a partir das transformações que sofreu ao longo
do tempo por influência das forças econômicas.
Conforme
explica Ferreira (2005), a importância de Bourdieu para o campo da comunicação
e, especificamente, para o jornalismo surge a partir do desenvolvimento de três
perspectivas no conjunto de sua obra: “a) nos anos 60, a crítica aos conceitos
de cultura de massa e de “mass-media”, considerados abstratos, e em defesa da
pesquisa empírica e experimental; b) nos anos 70-80, a crítica ao jornalismo
como espaço estratégico de ação vulgarizadora dos campos político e acadêmico
e/ou produto cultural de distinção e reprodução; c) e, finalmente, nos anos 90,
a crítica ao jornalismo como campo de autonomia incompleta, subordinado e
constituído conforme as estratégias do campo econômico, com efeitos de
homogeneização e heteronimização sobre os campos culturais e políticos” (p. 36).
Neste
contexto, Sobre a televisão localiza-se
na terceira fase. Ferreira (2005) destaca que, apesar das críticas à obra, ela
se mostra indissociável dos trabalhos anteriores, mais experimentais, e repleta
de teses que precisariam ser pesquisadas experimentalmente. Isso, de certa
forma, é explícito pelo próprio Bourdieu em várias passagens do livro, aliás –
sua expressão mais direta é o capítulo sobre os jogos olímpicos em que oferece
um programa de análise.
-
Principais propostas do autor
Noção de campo –
Bourdieu
(1997) trabalha com a ideia de que um campo é um espaço social estruturado por
forças, com dominantes e dominados, relações constantes de desigualdade, exercidas
em seu interior, onde ocorrem lutas que podem transformar ou conservar tal
campo de forças (p. 57-58).
Lógica da
concorrência – Diferente
da ideia hegemônica de que a concorrência favorece uma diversidade de conteúdo
nos produtos jornalísticos, o autor acredita que quando essa lógica funciona sob
as mesmas restrições, às mesmas pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes,
ocorre uma homogeneização entre os produtos jornalísticos. Para Bourdieu, esse
é apenas um dos aspectos a interferir no grau
de autonomia dos órgãos de imprensa e dos jornalistas (p. 30-31).
Censura
política, autocensura e censura econômica – Bourdieu (1997) acredita que
existem vários tipos de censuras exercidas tanto sobre aqueles que são
convidados à se expor na TV quanto aos que a produzem: há influências pelas
forças políticas (aquelas advindas do poder exercido pelo Estado, seja através
da publicidade ou da subvenção, ou ainda da vinculação de um determinado órgão
de imprensa à um determinado partido); a autocensura exercida pelos
profissionais de imprensa decorrente das circunstâncias de precariedade de
emprego nas profissões de TV e rádio, favorecendo maior conformismo político; as
próprias limitações do meio, que impõem um determinado assunto a ser tratado e
o curto espaço de tempo que restringe o discurso daqueles que se propõem a
expressar algo na TV; há, ainda, as influências econômicas, determinadas, entre
outros aspectos, pela lógica da concorrência e disputa por fatias de mercado de
anunciantes e audiência (p. 19-20).
Grau de
autonomia do órgão de imprensa e do jornalista – algumas das
sanções citadas no tópico acima vão influenciar direta e indiretamente no grau
de autonomia do órgão de imprensa e dos jornalistas. Para Bourdieu (1997), as
receitas provenientes da publicidade (assim como a concentração de anunciantes)
e da ajuda do Estado (seja em publicidade ou subvenção) vão influir no grau de
autonomia do órgão de difusão. Já quanto ao grau de autonomia de um jornalista
particular, ele enumera vários aspectos: o número reduzido de empregadores
potenciais aumento a insegurança do emprego; a posição do seu jornal entre os
outros jornais; sua posição no próprio órgão (efetivo, free-lancer etc.);
capacidade de produção autônoma da informação. Mas não são apenas forças
econômicas que vão influir no campo jornalístico, de acordo com o autor. As
instâncias governamentais, por exemplo, exercem pressão através do monopólio da
informação legítima (principalmente quando se trata das fontes oficiais), assim como outros campos: “(...) em primeiro
lugar, esse monopólio proporciona às autoridades governamentais e à
administração, (...), mas também às autoridades jurídicas, científicas etc.,
armas na luta que as opõe aos jornalistas e na qual tentam manipular as
informações ou os agentes encarregados de transmiti-las, ao passo que a
imprensa tenta, por seu lado, manipular os detentores da informação para tentar
obtê-la e assegurar para si sua exclusividade. Sem esquecer o poder simbólico excepcional
conferido às grandes autoridades do Estado pela capacidade de definir, por suas
ações, suas decisões e suas intervenções no campo jornalístico (entrevistas,
entrevistas coletivas etc.), a ordem do
dia e a hierarquia dos acontecimentos que se impõem aos jornais.” (BOURDIEU, 1997, p. 103-104).
O peso da TV e suas forças de banalização no campo
jornalísticos – Bourdieu
(1997) vai apontar um destaque cada vez maior da TV sobre os impressos: presença
cada vez maior de suplementos de televisão nos jornais; valorização dos
profissionais que têm programas de TV; definição da agenda pelos debates realizados na TV; busca dos acontecimentos
considerados extraordinários, de esportes e variedades, na luta pela conquista
de audiência, estratégia anteriormente adotada pelos jornais chamados de sensacionalistas
(p. 70-73). O autor aponta ainda a falta de conflito e problematização
ocasionada pela veiculação de fatos amenos, sem efeitos políticos e culturais,
devido ao objetivo de atingir um público mais extenso, o que faria, segundo ele
ainda, com que a informação perdesse sua aspereza e tivesse que ser homogeneizada
para atender tal demanda, de ajustamento às “estruturas mentais” do público (p.
62-65).
Influência do jornalismo em outros campos – Bourdieu
(1997) aponta a existência de um tipo de “intelectual-jornalista” mediador entre
o campo jornalístico e os campos especializados, interferindo, assim, em outros
campos de produção cultural. “Esses ‘intelectuais-jornalistas’, que se servem
de seu duplo vínculo para esquivar exigências específicas dos dois universos e
para introduzir em cada um deles poderes mais ou menos bem adquiridos no outro,
estão em condição de exercer dois efeitos principais: de um lado, fazer adotar
formas novas de produção cultural, situadas em um meio-termo mal definido entre
o esoterismo universitário e o exoterismo jornalístico; do outro lado, impor,
em especial através de seus julgamentos críticos, princípios de avaliação das
produções culturais que, conferindo a ratificação de uma aparência de
autoridade intelectual às sanções do mercado e reforçando a inclinação
espontânea de certas categorias de consumidores à ‘alodoxia’, tendem a reforçar
o efeito de índice de audiência ou de lista de best-sellers sobre a recepção dos produtos culturais e também,
indiretamente e a prazo, sobre a produção, orientando as escolhas (as dos
editores, por exemplo) para produtos menos requintados e mais vendáveis” (p.
111).
- Sobre a televisão e os critérios de
noticiabilidade
Observando
o enfoque tratado pelos outros autores acerca dos critérios de noticiabilidade
e valores-notícia, atual objeto de discussões no Njor, é possível observar uma
constante: a preocupação em conceituar e agrupar em categorias e classificações
os acontecimentos selecionados pelos jornalistas para figurarem nos produtos
jornalísticos.
Daí
que pode até ser encarado de forma estranha, à primeira vista, trazer os
estudos de Pierre Bourdieu, principalmente no livro que é alvo desta resenha, Sobre a televisão, para essa discussão
acerca dos critérios. O ponto é justamente a abordagem diferenciada que o autor
apresenta sobre a temática dos critérios de noticiabilidade, mesmo que esse não
seja o principal objetivo da obra debatida nesta resenha.
Mais
preocupado em compreender os mecanismos que fazem a máquina do jornalismo
funcionar, do que classificar ou categorizar, Bourdieu (1997) consegue traçar
senão um caminho, ao menos um rastro a ser seguido para uma melhor compreensão
acerca dos critérios de noticiabilidade e valores-notícia, apesar de não se referir
a nenhum destes conceitos.
O
autor faz uma resumida retomada da história recente do jornalismo para explicar
o modo como o conteúdo considerado “interessante”
foi tomando cada vez mais espaço nos impressos e tempo nos programas de TV
jornalísticos, em detrimento do conteúdo mais “importante”. No texto, Bourdieu (1997) não os classifica
explicitamente dessa forma, mas os interessantes como os programas e notícias
mais soft, de entretenimento, e os
importantes como aqueles que provocam discussões e problematizações acerca de
fatos relevantes e temáticas de impacto social e/ou político. Aqui, podemos
evocar, rapidamente, para não nos determos muito neste aspecto, a conceituação
de Gomis (2002), do interessante enquanto aquilo que produz comentários e do
importante como aquilo que provoca consequências.
Bourdieu
(1997) chama os acontecimentos interessantes de fatos-ônibus, “(...)
fatos que, como se diz, não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que
não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo
tal que não tocam em nada de importante. As notícias de variedades consistem
nessa espécie elementar, rudimentar, da informação que é muito importante
porque interessa a todo mundo sem ter consequências (...)” (p. 23).
De
fato, os dois autores concordam que haja uma presença mais marcante do interessante nos produtos jornalísticos,
que o importante. Porém, os motivos
apontados diferem. Enquanto para Gomis (2002) esse desbalanceamento se dá pela
abundância de acontecimentos interessantes que acabam preenchendo o espaço que
sobra dos acontecimentos importantes, mais escassos, ainda segundo o autor,
Bourdieu (1997) acredita que isso se dá por influência das forças econômicas
que geram uma lógica da concorrência, em que os órgãos de imprensa disputam as
fatias do mercado de leitores e de anunciantes.
Bourdieu
(1997) defende que essa lógica da concorrência gera um nivelamento que favorece
a homogeneização das hierarquias de
importância, onde o índice de audiência e, por consequência, o sucesso
comercial no mercado da comunicação se torna uma instância de legitimação. Para
ele, isso se dá pelo fato de que “(...) quando ela (a concorrência) se exerce
entre jornalistas ou jornais que estão sujeitos às mesmas restrições, às mesmas
pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes (...), ela homogeneíza” (p. 30-31)
e, também, de que “(...) para saber o que se vai dizer é preciso saber o que os
outros disseram. Esse é um dos mecanismos pelos quais gera homogeneidade dos
produtos propostos” (p. 32).
Naturalmente,
o autor retoma algumas ideias trabalhadas por outros, como aquela da realidade enxergada por óculos especiais
que permitem aos jornalistas enxergarem alguns aspectos e outros não; por
sinal, a citação a seguir é um pertinente exemplo de como Bourdieu (1997) toca
implicitamente na noção de critérios de noticiabilidade: “A metáfora comumente
empregada pelos professores para explicar essa noção de categoria, isto é,
essas estruturas invisíveis que organizam o percebido, determinando o que se vê
e o que não se vê, é a dos óculos. Essas categorias são produto da nossa
educação, da história etc. Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos
quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que
vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado” (p. 25).
Um
último aspecto, ainda, sugere-se aqui, que interfira na seleção dos
acontecimentos e participa da composição dos critérios de noticiabilidade é o
que Bourdieu (1997) chama de grau de
autonomia do órgão de imprensa e dos jornalistas. Como já apontado mais
acima em algumas das principais propostas do autor em Sobre a televisão, esse elemento específico surge como uma
influência externa ao campo jornalístico sobre os critérios. Aqui são as forças
econômicas que sustentam o órgão e que regem o mercado profissional, que
influenciam direta ou indiretamente na seleção dos acontecimentos, além do
monopólio da informação legítima por algumas instâncias governamentais e
autoridades jurídicas, científicas etc., sendo que as fontes oficiais do Estado têm, ainda, o poder simbólico de
interferir na hierarquia dos acontecimentos cobertos através de suas ações,
decisões e declarações.
- Mais
informações sobre Pierre Bourdieu
Sociólogo francês,
considerado um dos principais pensadores do século passado, morto em 2002, aos
71 anos. Suas obras e ideias foram de grande contribuição para o estudo de
várias temáticas na sociologia e antropologia, entre elas, educação, cultura,
literatura, mídia e política. Em 1954, Bourdieu se formou em filosofia e
assumiu função de professor em Moulins. Teve a carreira interrompida pelo
serviço militar obrigatório quando foi obrigado a ir para a Argélia, onde deu
aulas na Faculdade de Letras da capital do país, Argel. Ao voltar para Paris,
em 1960, Bourdieu foi assistente de um importante filósofo, sociólogo e
comentarista político da França (Raymond
Aron), na Faculdade de Letras de Paris. Se tornou membro do Centro de
Sociologia Europeia no mesmo ano, onde ocuparia o cargo de secretário-geral
dois anos depois. O período entre as décadas de 1960 e 1980 é considerado o de
sua produção mais relevante e influente. Com a repercussão de suas obras, a
partir da década de 1970, passou a lecionar também em instituições
estrangeiras, como as universidades de Harvard e Chicago, além do Instituto Max
Planck, de Berlim. Ministrou, em 1982, sua aula inaugural (Lições de Aula) no
Collège de France, propondo uma “Sociologia da Sociologia”, que consistia num
estudo focado na formação do sociólogo como censor e detentor de um discurso de
verdade sobre o mundo social. Com o que chamou de construtivismo estruturalista
ou de estruturalismo construtivista, o sociólogo defendia que existem estruturas
objetivas no mundo social que podem coagir a ação dos indivíduos. Todavia essas
estruturas são construídas socialmente. Porém, ele rejeitava a dicotomia
subjetivismo/objetivismo nas ciências humanas, dizendo que as relações sociais
estão numa relação dialética. Recebeu o título de Doutor honoris causa em três
importantes instituições da Europa: na Universidade Livre de Berlim, em 1989,
na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em 1996, e na Universidade de Atenas,
no mesmo ano. (Biografia com informações obtidas do site Infoescola e do artigo sobre Pierre Bourdieu na Wikipedia)
Referências:
FERREIRA,
Jairo. Mídia, jornalismo e sociedade: a herança normalizada de Bourdieu. In: Estudos
de jornalismo e mídia, Vol. II, nº 1, Florianópolis, UFSC, 2005.
GOMIS,
Lorenzo. Do importante ao interessante – ensaio sobre critérios para a
noticiabilidade no jornalismo. In: Pauta Geral: revista de jornalismo. Ano
9, nº 4, Salvador, 2002.
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