domingo, 26 de janeiro de 2014

Pierre Bourdieu: o campo jornalístico e sua interação com outros campos sociais

Eduardo Pereira Francisco
eduardo.p.francisco@gmail.com

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

Sobre a televisão surge como uma das mais populares obras de Bourdieu sobre o campo da comunicação, com ênfase no campo jornalístico e sua autonomia relativa aos outros campos sociais e à maneira como eles interagem entre si. Em linhas gerais, o autor defende, nesta obra, a ideia de que, nas últimas décadas, o jornalismo (principalmente após a integração da TV no campo jornalístico) vem contribuindo com o empobrecimento intelectual e cultural da população e, até mesmo, de outros campos de produção cultural, como a arte e a ciência, assim como a política e a democracia, a partir das transformações que sofreu ao longo do tempo por influência das forças econômicas.

Conforme explica Ferreira (2005), a importância de Bourdieu para o campo da comunicação e, especificamente, para o jornalismo surge a partir do desenvolvimento de três perspectivas no conjunto de sua obra: “a) nos anos 60, a crítica aos conceitos de cultura de massa e de “mass-media”, considerados abstratos, e em defesa da pesquisa empírica e experimental; b) nos anos 70-80, a crítica ao jornalismo como espaço estratégico de ação vulgarizadora dos campos político e acadêmico e/ou produto cultural de distinção e reprodução; c) e, finalmente, nos anos 90, a crítica ao jornalismo como campo de autonomia incompleta, subordinado e constituído conforme as estratégias do campo econômico, com efeitos de homogeneização e heteronimização sobre os campos culturais e políticos” (p. 36).

Neste contexto, Sobre a televisão localiza-se na terceira fase. Ferreira (2005) destaca que, apesar das críticas à obra, ela se mostra indissociável dos trabalhos anteriores, mais experimentais, e repleta de teses que precisariam ser pesquisadas experimentalmente. Isso, de certa forma, é explícito pelo próprio Bourdieu em várias passagens do livro, aliás – sua expressão mais direta é o capítulo sobre os jogos olímpicos em que oferece um programa de análise.


- Principais propostas do autor

Noção de campo – Bourdieu (1997) trabalha com a ideia de que um campo é um espaço social estruturado por forças, com dominantes e dominados, relações constantes de desigualdade, exercidas em seu interior, onde ocorrem lutas que podem transformar ou conservar tal campo de forças (p. 57-58).

Lógica da concorrência – Diferente da ideia hegemônica de que a concorrência favorece uma diversidade de conteúdo nos produtos jornalísticos, o autor acredita que quando essa lógica funciona sob as mesmas restrições, às mesmas pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes, ocorre uma homogeneização entre os produtos jornalísticos. Para Bourdieu, esse é apenas um dos aspectos a interferir no grau de autonomia dos órgãos de imprensa e dos jornalistas (p. 30-31).

Censura política, autocensura e censura econômica – Bourdieu (1997) acredita que existem vários tipos de censuras exercidas tanto sobre aqueles que são convidados à se expor na TV quanto aos que a produzem: há influências pelas forças políticas (aquelas advindas do poder exercido pelo Estado, seja através da publicidade ou da subvenção, ou ainda da vinculação de um determinado órgão de imprensa à um determinado partido); a autocensura exercida pelos profissionais de imprensa decorrente das circunstâncias de precariedade de emprego nas profissões de TV e rádio, favorecendo maior conformismo político; as próprias limitações do meio, que impõem um determinado assunto a ser tratado e o curto espaço de tempo que restringe o discurso daqueles que se propõem a expressar algo na TV; há, ainda, as influências econômicas, determinadas, entre outros aspectos, pela lógica da concorrência e disputa por fatias de mercado de anunciantes e audiência (p. 19-20).

Grau de autonomia do órgão de imprensa e do jornalista – algumas das sanções citadas no tópico acima vão influenciar direta e indiretamente no grau de autonomia do órgão de imprensa e dos jornalistas. Para Bourdieu (1997), as receitas provenientes da publicidade (assim como a concentração de anunciantes) e da ajuda do Estado (seja em publicidade ou subvenção) vão influir no grau de autonomia do órgão de difusão. Já quanto ao grau de autonomia de um jornalista particular, ele enumera vários aspectos: o número reduzido de empregadores potenciais aumento a insegurança do emprego; a posição do seu jornal entre os outros jornais; sua posição no próprio órgão (efetivo, free-lancer etc.); capacidade de produção autônoma da informação. Mas não são apenas forças econômicas que vão influir no campo jornalístico, de acordo com o autor. As instâncias governamentais, por exemplo, exercem pressão através do monopólio da informação legítima (principalmente quando se trata das fontes oficiais), assim como outros campos: “(...) em primeiro lugar, esse monopólio proporciona às autoridades governamentais e à administração, (...), mas também às autoridades jurídicas, científicas etc., armas na luta que as opõe aos jornalistas e na qual tentam manipular as informações ou os agentes encarregados de transmiti-las, ao passo que a imprensa tenta, por seu lado, manipular os detentores da informação para tentar obtê-la e assegurar para si sua exclusividade. Sem esquecer o poder simbólico excepcional conferido às grandes autoridades do Estado pela capacidade de definir, por suas ações, suas decisões e suas intervenções no campo jornalístico (entrevistas, entrevistas coletivas etc.), a ordem do dia e a hierarquia dos acontecimentos que se impõem aos jornais.”  (BOURDIEU, 1997, p. 103-104).

O peso da TV e suas forças de banalização no campo jornalísticos – Bourdieu (1997) vai apontar um destaque cada vez maior da TV sobre os impressos: presença cada vez maior de suplementos de televisão nos jornais; valorização dos profissionais que têm programas de TV; definição da agenda pelos debates realizados na TV; busca dos acontecimentos considerados extraordinários, de esportes e variedades, na luta pela conquista de audiência, estratégia anteriormente adotada pelos jornais chamados de sensacionalistas (p. 70-73). O autor aponta ainda a falta de conflito e problematização ocasionada pela veiculação de fatos amenos, sem efeitos políticos e culturais, devido ao objetivo de atingir um público mais extenso, o que faria, segundo ele ainda, com que a informação perdesse sua aspereza e tivesse que ser homogeneizada para atender tal demanda, de ajustamento às “estruturas mentais” do público (p. 62-65).

Influência do jornalismo em outros campos – Bourdieu (1997) aponta a existência de um tipo de “intelectual-jornalista” mediador entre o campo jornalístico e os campos especializados, interferindo, assim, em outros campos de produção cultural. “Esses ‘intelectuais-jornalistas’, que se servem de seu duplo vínculo para esquivar exigências específicas dos dois universos e para introduzir em cada um deles poderes mais ou menos bem adquiridos no outro, estão em condição de exercer dois efeitos principais: de um lado, fazer adotar formas novas de produção cultural, situadas em um meio-termo mal definido entre o esoterismo universitário e o exoterismo jornalístico; do outro lado, impor, em especial através de seus julgamentos críticos, princípios de avaliação das produções culturais que, conferindo a ratificação de uma aparência de autoridade intelectual às sanções do mercado e reforçando a inclinação espontânea de certas categorias de consumidores à ‘alodoxia’, tendem a reforçar o efeito de índice de audiência ou de lista de best-sellers sobre a recepção dos produtos culturais e também, indiretamente e a prazo, sobre a produção, orientando as escolhas (as dos editores, por exemplo) para produtos menos requintados e mais vendáveis” (p. 111).


- Sobre a televisão e os critérios de noticiabilidade

Observando o enfoque tratado pelos outros autores acerca dos critérios de noticiabilidade e valores-notícia, atual objeto de discussões no Njor, é possível observar uma constante: a preocupação em conceituar e agrupar em categorias e classificações os acontecimentos selecionados pelos jornalistas para figurarem nos produtos jornalísticos.
Daí que pode até ser encarado de forma estranha, à primeira vista, trazer os estudos de Pierre Bourdieu, principalmente no livro que é alvo desta resenha, Sobre a televisão, para essa discussão acerca dos critérios. O ponto é justamente a abordagem diferenciada que o autor apresenta sobre a temática dos critérios de noticiabilidade, mesmo que esse não seja o principal objetivo da obra debatida nesta resenha.

Mais preocupado em compreender os mecanismos que fazem a máquina do jornalismo funcionar, do que classificar ou categorizar, Bourdieu (1997) consegue traçar senão um caminho, ao menos um rastro a ser seguido para uma melhor compreensão acerca dos critérios de noticiabilidade e valores-notícia, apesar de não se referir a nenhum destes conceitos.

O autor faz uma resumida retomada da história recente do jornalismo para explicar o modo como o conteúdo considerado “interessante” foi tomando cada vez mais espaço nos impressos e tempo nos programas de TV jornalísticos, em detrimento do conteúdo mais “importante”. No texto, Bourdieu (1997) não os classifica explicitamente dessa forma, mas os interessantes como os programas e notícias mais soft, de entretenimento, e os importantes como aqueles que provocam discussões e problematizações acerca de fatos relevantes e temáticas de impacto social e/ou político. Aqui, podemos evocar, rapidamente, para não nos determos muito neste aspecto, a conceituação de Gomis (2002), do interessante enquanto aquilo que produz comentários e do importante como aquilo que provoca consequências.

Bourdieu (1997) chama os acontecimentos interessantes de fatos-ônibus, “(...) fatos que, como se diz, não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante. As notícias de variedades consistem nessa espécie elementar, rudimentar, da informação que é muito importante porque interessa a todo mundo sem ter consequências (...)” (p. 23).

De fato, os dois autores concordam que haja uma presença mais marcante do interessante nos produtos jornalísticos, que o importante. Porém, os motivos apontados diferem. Enquanto para Gomis (2002) esse desbalanceamento se dá pela abundância de acontecimentos interessantes que acabam preenchendo o espaço que sobra dos acontecimentos importantes, mais escassos, ainda segundo o autor, Bourdieu (1997) acredita que isso se dá por influência das forças econômicas que geram uma lógica da concorrência, em que os órgãos de imprensa disputam as fatias do mercado de leitores e de anunciantes.

Bourdieu (1997) defende que essa lógica da concorrência gera um nivelamento que favorece a homogeneização das hierarquias de importância, onde o índice de audiência e, por consequência, o sucesso comercial no mercado da comunicação se torna uma instância de legitimação. Para ele, isso se dá pelo fato de que “(...) quando ela (a concorrência) se exerce entre jornalistas ou jornais que estão sujeitos às mesmas restrições, às mesmas pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes (...), ela homogeneíza” (p. 30-31) e, também, de que “(...) para saber o que se vai dizer é preciso saber o que os outros disseram. Esse é um dos mecanismos pelos quais gera homogeneidade dos produtos propostos” (p. 32).

Naturalmente, o autor retoma algumas ideias trabalhadas por outros, como aquela da realidade enxergada por óculos especiais que permitem aos jornalistas enxergarem alguns aspectos e outros não; por sinal, a citação a seguir é um pertinente exemplo de como Bourdieu (1997) toca implicitamente na noção de critérios de noticiabilidade: “A metáfora comumente empregada pelos professores para explicar essa noção de categoria, isto é, essas estruturas invisíveis que organizam o percebido, determinando o que se vê e o que não se vê, é a dos óculos. Essas categorias são produto da nossa educação, da história etc. Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado” (p. 25).

Um último aspecto, ainda, sugere-se aqui, que interfira na seleção dos acontecimentos e participa da composição dos critérios de noticiabilidade é o que Bourdieu (1997) chama de grau de autonomia do órgão de imprensa e dos jornalistas. Como já apontado mais acima em algumas das principais propostas do autor em Sobre a televisão, esse elemento específico surge como uma influência externa ao campo jornalístico sobre os critérios. Aqui são as forças econômicas que sustentam o órgão e que regem o mercado profissional, que influenciam direta ou indiretamente na seleção dos acontecimentos, além do monopólio da informação legítima por algumas instâncias governamentais e autoridades jurídicas, científicas etc., sendo que as fontes oficiais do Estado têm, ainda, o poder simbólico de interferir na hierarquia dos acontecimentos cobertos através de suas ações, decisões e declarações.


- Mais informações sobre Pierre Bourdieu

Sociólogo francês, considerado um dos principais pensadores do século passado, morto em 2002, aos 71 anos. Suas obras e ideias foram de grande contribuição para o estudo de várias temáticas na sociologia e antropologia, entre elas, educação, cultura, literatura, mídia e política. Em 1954, Bourdieu se formou em filosofia e assumiu função de professor em Moulins. Teve a carreira interrompida pelo serviço militar obrigatório quando foi obrigado a ir para a Argélia, onde deu aulas na Faculdade de Letras da capital do país, Argel. Ao voltar para Paris, em 1960, Bourdieu foi assistente de um importante filósofo, sociólogo e comentarista político da França (Raymond Aron), na Faculdade de Letras de Paris. Se tornou membro do Centro de Sociologia Europeia no mesmo ano, onde ocuparia o cargo de secretário-geral dois anos depois. O período entre as décadas de 1960 e 1980 é considerado o de sua produção mais relevante e influente. Com a repercussão de suas obras, a partir da década de 1970, passou a lecionar também em instituições estrangeiras, como as universidades de Harvard e Chicago, além do Instituto Max Planck, de Berlim. Ministrou, em 1982, sua aula inaugural (Lições de Aula) no Collège de France, propondo uma “Sociologia da Sociologia”, que consistia num estudo focado na formação do sociólogo como censor e detentor de um discurso de verdade sobre o mundo social. Com o que chamou de construtivismo estruturalista ou de estruturalismo construtivista, o sociólogo defendia que existem estruturas objetivas no mundo social que podem coagir a ação dos indivíduos. Todavia essas estruturas são construídas socialmente. Porém, ele rejeitava a dicotomia subjetivismo/objetivismo nas ciências humanas, dizendo que as relações sociais estão numa relação dialética. Recebeu o título de Doutor honoris causa em três importantes instituições da Europa: na Universidade Livre de Berlim, em 1989, na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em 1996, e na Universidade de Atenas, no mesmo ano. (Biografia com informações obtidas do site Infoescola e do artigo sobre Pierre Bourdieu na Wikipedia)


Referências:

FERREIRA, Jairo. Mídia, jornalismo e sociedade: a herança normalizada de Bourdieu. In: Estudos de jornalismo e mídia, Vol. II, nº 1, Florianópolis, UFSC, 2005. 

GOMIS, Lorenzo. Do importante ao interessante – ensaio sobre critérios para a noticiabilidade no jornalismo. In: Pauta Geral: revista de jornalismo. Ano 9, nº 4, Salvador, 2002.

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