quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Nilson Lage: valores-notícia sob filtros técnico-ideológicos

Nisia Rizzo de Azevedo[1] 
nisiarizzo@yahoo.com.br 

LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 4ª ed. rev. e ampl. Florianópolis: Insular, 2012. Série Jornalismo a Rigor, Vol. 5.

O texto objeto desta resenha resulta da dissertação de Nilson Lage, defendida em 1979, na UFRJ, com o título original “Teoria elementar da notícia de jornal” e orientação de Paulo Amélio do Nascimento Silva, um dos tradutores de Durkheim e Lévi-Strauss no Brasil. Naquele ano, Lage publicou a pesquisa em forma de livro, com o título “Ideologia e técnica da notícia”. 



Reeditado 30 anos depois, encontra-se na 4ª edição. O processo de revisão e ampliação da obra incluiu atualizações do ponto de vista das técnicas e rotinas jornalísticas, sem alterações nas referências bibliográficas, que continuam as originais, não ultrapassando a década de 1970. Mas esse fato isolado não tira o mérito da obra, hoje um clássico brasileiro no campo jornalístico.

Lage traça uma arqueologia da notícia, situando no modelo brasileiro de jornalismo a existência de quatro fases: a primeira, panfletária, do reinado de D. Pedro I às regências; a segunda, literária, no reinado de D. Pedro II; a terceira, época de constituição do jornal como empresa, na República Velha; e a mais recente, de tensões e conflitos de interesses, marcada pelo uso da comunicação como forma de controle social.

O destaque à orientação ideológica na produção da notícia diz respeito, segundo o autor, aos valores enfatizados pela classe burguesa em ascensão, como os da liberdade de expressão e de imprensa, mesclados à noção capitalista da liberdade de constituir empresas jornalísticas. Assim, em tese, os jornais são livres para produzirem o conteúdo que quiserem, mas a necessidade de sobrevivência faz com que precisem atender os interesses comerciais e publicitários. O próprio Lage define a liberdade de produção da notícia no Brasil como uma “mística”, pois o jornal passa a ser uma arena de lutas ideológicas. 

Os conflitos ideológicos residem na valorização dos princípios da imparcialidade, objetividade e veracidade, em convivência com as marcas de subjetividade no processo de produção da notícia. Ou seja, embora se busque produzir notícias de forma objetiva, há a subjetividade do jornalista que a escreve. E a responsabilidade pela produção da notícia é diluída por um coletivo, a empresa jornalística, que se imiscui na relação do jornalista com a sociedade, gerando um distanciamento em relação aos leitores.

Aqui está o eixo do livro: ao empreender uma teoria da notícia, Lage identifica os filtros técnicos e ideológicos que buscam separar das notícias as crenças e perspectivas individuais inscritas em seu processo produtivo, para que se alcancem os ideais de objetividade.

Para Lage, a notícia é “matéria-prima” dos jornais, o “relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante, e este, de seu aspecto mais importante” (p.50). Mas ao invés de se concentrar na noção abstrata de “importância”, como o que contém “verdade” ou “interesse humano”, Lage busca identificar na notícia um núcleo lógico mais estável e outro ideológico, de caráter mutável.

Para buscar o primeiro núcleo, Lage recorre à Lógica, mas ao observar que a natureza da matéria que dá origem à notícia é a mutabilidade, conclui que uma teoria da notícia não poderia se apoiar nos limites das noções de “verdadeiro” ou “falso” da lógica aristotélica.

Assim, parte para uma visão sistêmica da notícia, buscando entender que a natureza da notícia é a ação, pois trata de um sistema em operação. Daí o autor fragmentar o conceito a partir de características que se assemelham a funções destinadas a manter o equilíbrio do sistema:



i) a notícia é axiomática, dispensando argumentos e provas; 

ii) é contextualizada no tempo e no espaço; 

iii) resulta do prestígio da confiabilidade de um emissor aparente ou do veículo de comunicação; 

iv) é polissêmica, daí precisar de um certo nível de redundância na mensagem; 

v) deve ser compreendida em uma estrutura em que estão previstos emissor e receptor; 

vi) do ponto de vista das funções jakobsonianas da linguagem, nela predomina o aspecto referencial, buscando-se nela eliminar as funções emotiva (referente ao emissor) e conativa (dirigida ao receptor), procurando ocultar ambos os polos da interação comunicativa; 

vii) deve apresentar harmonia vocabular, devendo empregar verbos no indicativo e foco narrativo em terceira pessoa, gerando efeito de isenção no discurso; 

viii) trata de fatos de um passado recente cuja ação foi concluída (perfectiva), já que notícias sobre desdobramentos de um mesmo fato aparecem como sucessão fragmentada de relatos, sem unidade narrativa; 

ix) a notícia pode também tratar de um acontecimento em um futuro próximo (futuro simples); 

x) não trata de pensamentos ou crenças, a não ser quando manifestos em um discurso; 

xi) os verbos usados em seus enunciados vêm dos campos semânticos do fazer (transformação), ir (movimento) e dizer (comunicação); 

xii) sua linguagem está na interseção entre os registros formal e coloquial. 

Em resumo, “notícias são fragmentos de aparências [eis aqui o aspecto veraz, não verdadeiro] que se manifestam por transformações, movimentos ou enunciações” (p. 64-5).

Lage também conceitua a notícia com base no trinômio nomeação-seleção-ordenação, reflexos de subjetividades porque dizem respeito ao arbítrio dos jornalistas. Pois o processo de nomeação não é neutro para os jornalistas, “de vez que terão de operar com palavras de uso comum, moeda corrente no sistema de trocas ideológicas, com carga inevitável de implicações e conotações” (p. 70).

A aproximação de informações no texto noticioso tende a sugerir uma relação de causa e efeito, como ele exemplifica na sentença “Na África do Sul, país que adotava o apartheid, a economia ia bem”, sugerindo que a adoção do apartheid teria gerado o êxito econômico na África do Sul. Tanto o dito como o não-dito povoam a mitificação de correlações criadas pelos jornais entre os acontecimentos por eles nomeados. Ou seja, não somente nomeiam-se os fatos, mas se lhes atribuem sentidos, causas e consequências, ainda que em tese esta seja uma tarefa delegada à reportagem. 

Compreendido pelo autor também em seu aspecto linguístico, como unidade mínima de significação, o texto noticioso resulta de um processo industrial de produção e tem por objetivo comunicar ideias. Não visa argumentar nem questionar, ainda que possa reunir declarações e questionamentos das fontes de informação, mas mostrar e declarar a partir de modelos textuais expositivos e narrativos. 

A narratividade é mais uma questão de estilo textual, expressa pela eleição de verbos que dão a impressão de movimento (= e depois). Já o modelo expositivo dominante nos textos noticiosos não segue a organização temporal, mas se compõe de relações lógicas entre conjuntos de tópicos frasais e documentações, desde que a comunicabilidade esteja garantida.

Quanto ao binômio seleção-ordenação, Lage os articula com as noções de importância e interesse. Assim, o autor chega à eleição de seis valores-notícia filtrados segundo “constatações empíricas, pressupostos ideológicos e fragmentos de conhecimento científico” (p. 85): 

1) Proximidade: valor-notícia que deriva mais de relações comerciais, culturais e populacionais do que de aspectos geográficos; 

2) Atualidade: a novidade do ainda não conhecido, podendo tornar atraente uma notícia na medida em que corresponda a alguma aspiração ou desejo comum; 

3) Identificação Social: a lógica da produção da notícia sugere a mesma necessidade de identificação social das classes sociais mais baixas em relação às mais altas, nas sociedades divididas em classes, quando produtos e modas são transmitidos e imitados de forma verticalizada, ascendente e por contiguidade; 

4) Intensidade: aspecto relacionado às cifras muito pequenas ou muito grandes, pelo valor retórico resultante da dificuldade de o leitor precisar tais quantidades, podendo gerar distorções; 

5) Ineditismo: raridade de fato cujo grau de improbabilidade seja aceito como possível, de acordo com a credibilidade do veículo de comunicação; 

e 6) Identificação Humana: em uma primeira escala, há os olimpianos (Edgard Morin) ou celebridades, mas também ocorre quando pessoas reúnem atributos desejáveis ou idealizados pelos outros ou quando há identificação com aspirações comuns de pessoas também comuns.

A ordenação da notícia segue também a constituição da estrutura linguística do lide noticioso clássico, segundo aspectos sintáticos de sua composição. Lage propõe uma fórmula que universaliza a composição do lide brasileiro, de sequências de tópicos frasais seguidas por documentações realizadas de formas descritiva, narrativa ou de acordo com transcrições textuais. 

Para reforçar a constituição de uma teoria da notícia, Lage busca também distinguir notícia de reportagem para além das demarcações em termos de extensão textual (reportagem é uma notícia estendida) ou inclusão de antecedentes e consequentes dos acontecimentos. Para Lage, a reportagem é um gênero jornalístico, de interesse mais permanente que a notícia, que parte de um fato gerador de interesse, ao produzir um alargamento da importância do fato ao assunto e deste a assuntos correlatos, no decorrer do tempo. 

Para ele, a reportagem pode ser identificada ainda pela forma como é realizada: a) investigativa, como no caso norte-americano Watergate; b) interpretativa, segundo a observação de acontecimentos, como predomina no jornalismo europeu; ou c) novo jornalismo, corrente norte-americana de inserção de técnicas da ficção literária na produção de reportagens, que no Brasil pode ser representada pelos relatos de João do Rio. Mas o aspecto técnico-ideológico mais uma vez se instaura, porque a realização de reportagens, que prevê um período de captação e apuração mais extenso, depende de interesses e investimentos dos veículos de comunicação. 

O autor ainda discute no livro as características do jornalismo de revista e propõe uma reflexão filosófica a respeito da noção de verdade aplicada ao jornalismo, considerando o aspecto empírico dos relatos e a implicação deles em uma série anterior de enunciados. No caso do jornalismo, há “uma verdade comprometida com uma prática” (p. 137), segundo constrangimentos de técnicas produtivas que buscam ocultar relações de poder.

Tais relações aparecem na forma de captar a notícia, quando o jornalista está de alguma maneira distanciado da realidade de que trata no texto e, em decorrência disso, recorre a estereótipos, reforçando-os. Mas para o autor existe uma saída, se se considerar que coabitam nos jornais “indícios da realidade e rudimentos de filosofia prática, crítica militante, grandeza submetida, porém insubmissa”. (p. 143)

O autor e sua produção

Aposentado em 2006 do cargo de professor titular no Departamento de Jornalismo da UFSC, Nilson Lage é uma referência nos estudos de jornalismo no Brasil, seja pela qualidade dos títulos que produziu, que são bibliografia básica em cursos de graduação e concursos da área, seja pelo pioneirismo nos estudos teóricos sobre notícia e reportagem.

Com graduação em Letras, mestrado em Comunicação e doutorado em Linguística pela UFRJ, onde também foi professor, de 1977 a 1991, busca em seu percurso acadêmico evidenciar a busca por uma teoria do texto da notícia pelo viés da linguística, incorporando a essa trajetória sua larga experiência como redator e editor nos jornais Diário Carioca, Jornal do Brasil e O Globo e na revista Manchete.

Entre os títulos assinados por ele estão “A Linguagem Jornalística” (1990) e “A Estrutura da Notícia” (1993), da Série Princípios, da Editora Ática, ambos derivados do texto ora resenhado. O primeiro defende uma linguagem propriamente jornalística, na interseção entre os registros coloquial e formal e sujeita à necessidade de comunicar e aos compromissos ideológicos do uso da linguagem, como os processos de resistência, nomeação, eufemismos e relexicalizações. O segundo define a notícia a partir de princípios de seleção, ordenação e nomeação, segundo uma lógica que estrutura o texto a partir de aspectos mais importantes e interessantes, distribuídos em elementos básicos como o lide, em suas diversas tipologias. 

“A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística” (2003), da Record, é uma espécie de manual com reflexões e orientações para a produção de reportagens. E “Teoria e Técnica do Texto Jornalístico” (2005), da Elsevier, trata tanto da estrutura e do estilo do texto jornalístico quanto o aborda teoricamente, a partir da lógica formal e das máximas conversacionais de Grice, ancorando as reflexões do autor na pragmática conversacional.






[1] Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo Poscom/UFBA.

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